Margarida Medeiros / Susanne Themlitz
MM: O teu trabalho tem estado muito centrado na perturbação das fronteiras rígidas entre a realidade e o fantástico, entre o humano e o animal, que se concretiza na produção de figuras não realistas. Como é o processo que leva a essas figuras?
ST: O que me interessa no processo da memorização de elementos visuais e de situações experimentadas, mesmo banais, é manipularmos imediatamente os valores e conteúdos e arquivá-los logo com vários sistemas de selecção nas nossas gavetas associativas. Por isso fala da perturbação das fronteiras rígidas entre a realidade e o fantástico no meu trabalho. Não gosto de pensar que essas fronteiras são rígidas; o que me fascina é poder, já à partida, injectar imagens, objectos ou simples descrições (com textos) - situações manipuladas - numa possível leitura e percepção.
MM: Essas figuras são uma forma de falar de um sentimento de incerteza acerca da natureza humana?
ST: Não sei bem, há, muitas vezes, só uma pequena deslocação de sentidos.
MM: Neste último trabalho para a galeria Luís Serpa ("Solitários e Inofensivos"), entra o auto-retrato, mas um auto-retrato de contornos formais fluidos, realizado num registo deambulante e desfocado pelo uso da camera obscura (no painel dos "Solitários"). Estamos diante do mesmo sentimento? Por outro lado, os "Trigémeos Inofensivos", que continuam a encenação da mesma máscara de careca estão muito definidos, apesar de terem um ar "fantástico", de duendes ou qualquer coisa no género...
ST: A máscara é uma careca prolongada com orelhas, acho que se chamam no seu mundo de origem Coneheads. Servi-me da camera obscura na série dos "Solitários e Inofensivos" exactamente porque define e foca menos a imagem, tendo um tempo de exposição longo e permitia-me assim parasitar dentro do emolduramento fotográfico, sem ter uma definição exacta desse ser que vagueia pelas imagens. Normalmente sou eu que apareço nas imagens, mais por uma razão prática: admiro muito o trabalho de encenação e de equipa, mas sou relativamente incapaz de orientar um grupo, quando tenho que pensar paralelamente no meu trabalho. Por outro lado já tentei, depois dos "Egomaníacos e Imperfeitos"(2000), trabalhar com os retratos de amigos, porque não é o registo da minha cara que de facto me interessa, mas percebi depressa que com várias fisionomias se perdia o sentido de definir e complementar a etologia de uma espécie, que também tenho vindo a fazer com escultura e desenho (nos "Espectros", nos "Bons, menos Bons e outros Sobreviventes" ou na instalação que estou a preparar dos "Solitários, Carrancudos e Ensimesmados" para a Fundação D. Luís I). Também nos Trigémeos Inofensivos, retratos realizados com a técnica clássica da fotografia, onde a minha anatomia aparece noutras proporções, não interessa reconhecer a pessoa retratada, mas mais a espécie com os seus comportamentos sugeridos pela pose, pelo olhar, pela perspectiva escolhida, dentro da tradição do retrato.
MM: Parece haver uma pesquisa sobre a identidade da espécie, através deste interesse pelo retrato. É uma identidade pouco diabólica, ou não acha?
ST: Ambígua, sim, pelo facto de os trabalhos serem talvez muitas vezes estranhos, por um lado, mas banais por outro. Existe um termo alemão "unheimlich", que encontramos também em Freud. Curiosamente é composto por uma negativa ("un"), "heimlich" de "geheim" e significa tanto como secreto ou familiar. É de uma identidade "unheimlich", desconfortável, inquietante, que fala, que pode ficar próxima do pavoroso e lúgubre? Mas também é a do grotesco, do leve e divertido...e no di-vertido se encosta o desviado...
MM: Há uma intenção, desde há algum tempo, de observação da expressão humana, mesmo que seja a partir da sua própria figura?
ST: Sim. A expressão (humana) é uma ferramenta-fonte donde surgem gestos, ideias e carácteres. É comunicação e sentimento.
MM: Quando fez a pesquisa sobre o George Méliès, que resultou no trabalho exposto no Museu do Chiado,parecia haver uma atracção pelos jogos mágico, os jogos de presença e ausência, de luz e de escuridão, os jogos que exprimem um certo inconsciente...ou não?
ST: Inicialmente comecei a juntar tudo o que encontrava sobre o ilusionista e relojoeiro Robert-Houdin (que não é o Houdini!), anterior a Méliès. Fiquei fascinada pelas suas imensas memórias escritas, onde nunca se percebe o que é verdade ou ficção. Méliès comprou mais tarde o seu teatro (que já ardeu), onde Robert-Houdin tinha feito as "soirées fantastiques", com levitações etc. Méliès serviu-se, logo que consegiu as máquinas necessárias, da imagem em movimento para poder construir situações ainda mais maravilhosas e fantasmagóriocas, pintava os cenários e assim o lugar de acção podia ser quase-real ou um delírio. As associações de elementos de Méliès, a frágil fronteira daquilo que é ou parece, o seu sentido de humor, prenderam-me.
Realizei o trabalho "Quiproquo" numa espécie de homenagem a Georges Méliès, quase como um diálogo , por isso achei também importante escolher fragmentos de filmes dele para a exposição, em forma de documentação.
MM: Seria capaz de explicitar/consciencializar a sua opção pela fotografia, mesmo quando no início está a escultura? Terá a ver com uma certa distanciação material que a fotografia permite, por via da captação automática?
ST: Acho que aí tenho que observar cada trabalho/série individualmente. A técnica é só um meio para o fim. As caixas de luz de 1995, por exemplo, onde fotografei projecções de esculturas (minhas) em cima de esculturas, instaladas em fragmentos arquitectónicos, tinham mesmo que ser como resultado final em fotografia iluminada /caixa de luz. A fotografia engana muito, e isso é óptimo - a velha história, nunca se sabe exactamente a parte documental e o lado construído da imagem. No fundo também não interessa, porque é a imagem fotográfica completa que se impõe como realidade proposta, pode é permanecer uma insegurança na transmissão dos dados. Há uma captação automática tanto ao fazer (e manipular) uma fotografia, como na percepção da imagem final produzida. Na parte fotográfica dos "Egomaníacos e Imperfeitos", ultilizei retratos encenados préexistentes (do início do século), introduzi-lhes uma outra cara (a minha) e elementos de animais. Tentei ficar fiel aos materiais, as dimensões e as margens dos negativos originais da época. Acho que foi uma opção importante, que já tinha tomado no "Quiproquo"(1999) a partir das viagens maravilhosas de Geroges Méliès", para poder permanecer uma subtilidade na estranheza. Esta dimensão, de pequena janela para um mundo, também a utilizei nas fotografias panorâmicas das "Paisagens Transportáveis"(1998). Introduzi figuras humanas (em miniatura) nas paisagens de gesso (apresentadas em caixas transportáveis) e fotografei-as de uma perspectiva de um possível viajante. Utilizo a fotografia como afirmação de uma pensamento hipotético, de uma possibilidade assumida. Um pseudo-voyerismo egoista.
MM: Penso muitas vezes nesse termo que o Freud analisou em relação ao seu trabalho (aliás no catálogo do Chiado, o Pedro Lapa também referia isso). Acha que essa procura da ambiguidade, é um desafio à aceitação de um certo absurdo que ronda a vida humana?
ST: Estava a pensar qual o contrário de procura, é encontro - ou achamento? - bem, é encontrar e achar estranhezas (surpresas, desconfianças, pasmos, espantos, esqivanças, ambiguidades), sem necessáriamnte as procurar, nas realidades e relações absurdas à nossa volta.