Maria Beatriz Marquilhas / Susanne S. D. Themlitz

 

O seu percurso artístico é atravessado por uma exploração do

limite. É um trabalho que se desenvolve nas fronteiras entre o

animal e o humano, o real e o onírico, o racional e o irracional, a

forma e o informe. Como se fossem o campo e o contra-campo

que se cruzam no diálogo de um filme. Qual a importância desse

diálogo e do estudo desses limites para o seu trabalho?


Penso que somos nós que tendemos a desenhar limites, a

observar e a reflectir ideias e temas isolados para nos

orientarmos, concertarmo-nos e para eventualmente

conseguirmos compreender macroscopicamente o mapa-mundo,

que nos vai escapando constantemente. Sim, no meu trabalho

talvez me interesse também reflectir ou mesmo não obedecer a

esses limites, quebrar imagens - mesmo na escrita -, linguagens,

contextos, memórias e o tempo. Procurar algo mais no "entre" e

menos no "em". É evidente que permanece uma ficção e

simplesmente um momento. Mas talvez fique algum rasto que se

fuzione com uma perspectiva ou memória suspensa. Ou que o

tempo pare por um instante.

 

É algo que também está presente na origem do processo criativo?


Parar sim. Parar, fazer, subtrair, procurar, medir, ler, caminhar,

descansar, fazer, afastar, ver, deslocar, dormir, acordar e fazer

outras coisas também.

 

A ideia de assemblage está também muito presente. Os

elementos reúnem-se como se fossem fragmentos ou despojos,

mas simbolicamente concretos e até directos, para formar um

todo cujo sentido é fracturante, irracional. Exactamente como

num sonho. Os temas do sono e da sonolência estiveram mesmo

na base de algumas das suas exposições. Esta dimensão onírica

tornou-se uma questão formal no seu trabalho?


Menos uma questão formal, ainda que pareça que sim, porque as

regras podem ser pouco rígidas. De facto, no sonho pode-se

juntar e desfragmentar tudo e todos, perdemos o chão ou

voamos. Não me parece que consiga, através do meu trabalho,

chegar a um tal caos construtivo e lógico. Dentro das

fragmentações e descontextualizações existem muitas regras a

respeitar para que eu consiga manter uma força ou razão. Mas

tento, assim como também tento desligar-me dos meus

territórios seguros. Por isso, vou apalpando o caminho devagar e

a passos lentos.

 

O seu trabalho, sobretudo nas pinturas, oscila muitas vezes entre

a precisão e o pormenor, frequentemente representados através

do desenho, e a mancha ou o borrão, que parecem ter um efeito

de distorção nessas obras. A coexistência desses dois registos

pictóricos e o contraste evidente entre eles tem um sentido e um

propósito particulares? Qual a sua origem?

 

A origem pode ser eu mesma? A coexistência de vários registos é

o nosso dia-a-dia. Tento viajar dentro dos registos que me

interessam, ou antes, naqueles que me sinto mais ou menos apta

a explorar. Aí, claro que encontro outros pelo caminho ou em

diálogo, soltam-se uns, outros ficam para trás por uma ou outra

razão. Aí, existem muitos formatos que podem fazer sentido:

desenho, pintura, instalação. Mesmo o desenho ou a pintura

podem ser instalação, pelo menos é assim que penso as coisas, a

linha, o ponto, o borrão. É tudo um sentido, camadas sobrepostas

num só momento. Talvez um croché gigante.

 

Algumas das suas obras apresentam-se como composições

cénicas em que a justaposição, o encaixe ou a ligação entre os

vários elementos, muitas vezes objets trouvés, ostentam um

equilíbrio muito frágil. Interessa-lhe explorar essa fragilidade do

equilíbrio que sustenta a coexistência dos objectos e dos seres?


Sim. Fascina-me! Encostam-se umas coisas a outras,

equilibram-se, suportam-se, coexistem existencialmente.

Fragilidade e estabilidade paralelas num momento de sopro. Um

dinamismo mudo e extremamente real, sempre possível que mude

ou que quebre de um momento para o outro. Talvez seja essa a

minha tentativa de congelar o tempo.

 

O seu percurso revela uma preocupação constante com o humano

enquanto criatura que habita ao mesmo tempo o real e o irreal. A

presença, no seu trabalho, de uma dimensão fantástica, mítica ou

imaginária, pretende dar pistas para uma compreensão da

natureza humana e dessa sua duplicidade?

 

Não vejo que o meu trabalho possa dar pistas, mas talvez se

encontre algures nessas pistas labirínticas. De facto, a história e

o presente parecem-me tão brutalmente reais que me custa

apalpar a sua imensa complexidade. Que teia tão fascinante...! E

a nossa realidade então, parece-me alucinação. Mas sinto o meu

trabalho muito terra-a-terra, simples, tranquilo e real.

Duplicidade, talvez, ou mais uma camada entre estas tantas, um

observatório com pontos em velocidade pingue-pongue.

Tem uma série de livros de artista numerados com o título Outros.

 

A questão da alteridade parece ser transversal ao seu percurso.

Qual a origem desta preocupação com a questão do outro? O

trabalho artístico tem vindo de algum modo a complexificar esta

questão, pela constante presença do espectador, um outro

anónimo que vê e que de certo modo invade?


Talvez. É verdade que me interessa a ideia da distância para

reflexão em nós, a razão, aquilo que vê e está, uma posição de um

olhar mais puro talvez, ou mais criativo? O estranho, o outro, mas

muito íntimo e ligado, próximo, fiel ao resto, mas nada preso.

Voltando aos títulos dos livros, há um que se chama 2

Storyboards (1999), referente a um vídeo de animação e a uma

instalação dos Bons, menos Bons e outros Sobreviventes. Outros

títulos são Manipulações Incompetentes (1995-99), Unterwegs

(Abroad) (1997/98), Imperfeitos (2000), mhms (Retratos)

(2001-2006), Vazios (1996-2006), Livro Errante (2006),

Extroversões (2006), Für Fremde, traduzível como "pela

estranheza" ou "para estranhos", e sim, também Outros 14

(2006-2012) e Outros 23 (2007-2012). Todos eles, ou quase

todos, terminam com "... (continua)". Há um outro trabalho, os

bronzes na maternidade de S. Francisco de Xavier, que são os

Anónimos, relevos de retratos ausentes, em negativo. Estes

títulos lidos em sequência parecem de facto fazer parte de uma

família. Até há pouco tempo ainda havia contornos de

personagens (anónimos) milimétricos nas telas, que deixaram de

estar presentes. Pareceu-me já não necessitarem dessa presença

e escala: continuam a estar sem estar... O que pode ter que ver

com o outro que está a olhar. São os pequenos passos de que há

pouco estava a falar.

 

Uma dos aspectos que distingue o seu trabalho é a variedade

inesgotável de meios que utiliza na produção das obras:

escultura, instalação, pintura, desenho, vídeo, escrita, fotografia.

A par desta versatilidade formal, há uma forte coerência nas

ideias exploradas. Este recurso a vários media parte de uma

necessidade criativa de usar diversas linguagens ou é uma

abertura formal que tenta impor ao seu trabalho?


Parece-me que entraria num beco sem saída se me limitasse a um

único meio. Também não seria eu. Portanto, aproximo-me ou

aproximamo-nos de vários pontos de partida, cada um com a sua

própria linguagem, cada um e cada técnica obedecendo a regras

diferentes. É esta coexistência de registos, de camadas, de

pontos de observação ou de fuga, do outro, outra vez, também. E

o olhar focado num momento, a partir da tal teia com muitos

portos de navegação e observatórios suspensos.

 

Os livros e os textos que escreve são uma presença constante no

seu percurso artístico. O uso da palavra é aqui peculiar porque em

vez de elucidar, ilustrar ou legendar as obras, acrescenta-lhes

algo, complexifica-as ou confronta-as. Parece ser apenas mais

um suporte de criação que, tal como a pintura ou a escultura, tem

uma gramática própria. Como vê a palavra e qual o seu papel no

seu processo artístico?


Gosto da palavra escrita. Gosto do silêncio da palavra, da

tipografia. Do espaço que ela toma no papel e além do papel. Dos

pontos, das vírgulas, das imagens que a palavra cria, do seu

ambiente, da matéria quase não existente mas tão grande, das

composições, da alteração de sentidos, da sua força, da sua

poesia. Sou bilingue. E mesmo assim, ou mesmo por isso, nunca

sei muito bem se está certo ou mesmo se é possível dizer assim.

Mas em muitos casos estou segura de que deve ser escolhida

uma palavra ou uma junção específica de palavras, mesmo se não

existe bem assim. Pode ser que seja uma aproximação muito

escultórica, de modelação, de aproximação, de diálogo com ela

mesma. Ou mais de desenho. Mas nem uma coisa nem outra. O

processo de escrever é semelhante a qualquer outro trabalho com

outro meio. Não me sai "assim", é mais um processo de me focar,

pesquisar, sentar, trabalhar, retirar, ponderar, questionar. Enfim, é

mais um suporte que só assim pode existir, uma camada

suspensa. De palavras.

 

Na sua última exposição na Vera Cortês Art Agency, Respiração.

Pausa – entre dois pontos, a figura humana está completamente

ausente e a exposição centra-se na paisagem. No texto que

acompanha a exposição fala de paisagens permeáveis e de

paisagens mentais, de espaço dissecado, de microscopias e de

macrocosmos, de trilhos e de localizações topográficas. Apesar

de a questão do espaço estar presente em projectos anteriores,

esta é a sua primeira exposição em que a paisagem é de facto o

epicentro. Porquê esta incursão na dimensão espacial?


Mesmo se os temas são aparentemente outros, aproximo-me

muito deles através do modo como leio a paisagem.

Anteriormente no meu trabalho centrava-me mais no ausente e na

paisagem habitada. A paisagem como anatomia de um mapa, um

mapa com veias, a tentativa de um olhar panorâmico – lembro-me

aí das Paisagens Transportáveis ou dos Panoramas Caseiros

(1998), mas sempre também nas minhas instalações... O meu

olhar é muito a partir da instalação, é o que me deve dar mais

espaço para me mover e desprender. Talvez a paisagem esteja

mais afirmativa nesta exposição. Surpreende-me e fico satisfeita

caso tenha conseguido desenhar uma só paisagem dentro das

cinco salas com momentos aparentemente tão diversos.

 

Nesta exposição volta a usar o espelho. Para além de criar uma

continuidade que se abre no espaço, uma duplicação, o espelho é

por vezes usado como mecanismo de distorção de formas. Na

exposição The DormouseIs Asleep Again, que apresentou na

Kunstraum Düsseldorf em 2014, recorre a espelhos côncavos e

convexos que convocam os processos de anamorfose usados

pelos pintores nos séculos XVI e XVII. Qual a importância, no seu

trabalho, da criação de ilusões sensoriais e perceptivas?


A leitura daquilo que é e está, daquilo que aparece como

fragmento, no espelho por exemplo, ou noutras proporções, o

nosso olhar posto em questão (Metamorfopsia Dois Mil e Cinco),

a nossa dimensão também. O olhar focado muda por vezes toda a

leitura. Adoro as microscopias e as quase não-existências que

são por vezes tão mais frágeis mas fortes. Em 2003, usei pela

primeira vez uma chapa acrílica espelhada na instalação do Oh la

la,... oh la balançoire/Microcosmo tentacular: uma coluna de

alguidares de dois metros e tal, com um caracol gigante em cima

cujas proporções ficavam metamorfoseadas na chapa acrílica,

bem como a própria sala da Gulbenkian ou, dois anos mais tarde,

da Culturgest, onde a obra esteve exposta. Tenho muito respeito

ao usar o espelho, fujo a sete pés desse tipo de simbologias, mas

às vezes faz sentido e espero não abrir portas a esse campo de

interpretação.

 

Surge também, sobretudo em Círculos/Reflexões simples em

dimensões básicas, o que parece ser a procura por um padrão,

por uma forma que se repete, como se estivesse a ser alvo de um

estudo. Essa procura – se é de facto de uma procura que se trata

– tem algo que ver com um olhar sobre a paisagem, como se se

tentasse impor uma ordem ou uma medida àquilo que vemos ou

encontrar um mapa ou uma orientação?


Sim, é algo como encontrar ou receber uma ordem, uma medida,

um ponto, uma A4, e que pode ser posta em causa por outras

medidas e ordens.

 

O termo Unheimlich de Freud surge frequentemente em

entrevistas ou em textos sobre o seu trabalho. Unheimlich é uma

palavra relacionada com algo que, pela sua natureza, deve

permanecer oculto e que é exposto ou revelado. Essa é, de algum

modo, a tarefa do artista, isto é, dar a ver aquilo que, por norma,

permaneceria encoberto?

 

Não sei. Não me importava. Espero que o façamos todos de uma

maneira ou de outra. Acho que o Unheimlich não pede para

permanecer oculto, mas pode não ser muito confortável. O meu

ponto de partida é muito caseiro, de garfo e lupa.

 

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