Metamorfopsia Dois Mil E Cinco
2.0.0.5. nasceu com uma coisa nos olhos que desde sempre o fez considerar a vida, com proporções desproporcionadas e qualidades estranhas. Apercebia-se muito bem das coisas, mesmo quando tudo se confundia.
Se as formas se expandiam à sua frente, o seu campo de consciência também se alargava, havendo uma apreensão mais intensa e abrangente, quer do mundo exterior, quer do interior. Mas davam-se sempre alterações quantitativas e qualitativas.
Acontecia deixar de distinguir as condições reais das suas imagens mentais. Podiam até tomar o formato de alucinações, e então sentia-se dividido. Já ouvira falar disso. Os limites entre o seu eu e o mundo exterior não lhe pareciam bem definidos.
Passou a viver de acordo com o mundo interior. As recordações e as representações ocupavam o lugar do mundo objectivo. Podia acontecer viver situações passadas como se estivesse noutro local e noutro tempo. Será que tinha perdido a noção de pertença do seu pensamento? Porque estava a ser manipulado pelo simples facto de ter olhos e cérebro.
Orientava-se pela perturbação do seu campo visual, sentindo uma desorientação. Entrava em conflito com o tempo e o espaço dos outros.
Tinha desenhado para si próprio um mapa da cidade onde vivia. Nunca se perdia; pelo contrário, o seu mapa memorial dava-lhe sempre imensas referências e quando viajava ligavam-se os fios do seu conhecimento intelectual, adquirindo mais uns elementos desconhecidos para o seu arquivo. Primeiro focava a consciência para um determinado estímulo ou experiência, concentrava-se, para logo a seguir divagar.
Como todos os seus conhecidos, também 2.0.0.5. usava a memória para reter, fixar e recordar as suas experiências. Essa memória podia já estar também distorcida, mas não havia nada a fazer. Não, não alterava as suas memórias de acordo com o momento actual. Ou talvez às vezes, quando lhe convinha.
De qualquer modo, já no seu tempo andavam a misturar muito as coisas, desde decisões políticas a fusões em laboratórios. Por exemplo, os seus vizinhos injectavam células humanas em cérebros de macacos e ratos recém nascidos, para depois se poderem multiplicar as informações ao longo da vida dos animais. Já considerava as quimeras como vizinhas. Até tinha considerado a possibilidade dele próprio ser um espécimen resultante do que acontecia naqueles laboratórios. Talvez estivessem a conseguir melhorar o ser humano.
A percepção integrava e organizava-lhe em cada instante os diferentes fenómenos, dando unidade à cabeça de 2.0.0.5. Vivia assim mnésico. E num estado pós-onírico.
Ganhava o conhecimento do mundo através dos estímulos sensoriais, ou seja, dos seus órgãos dos sentidos algo deformados: Podia ter alterações da intensidade nos estímulos visuais e percepcionar formas algo alteradas. Então, os elementos apareciam-lhe tortos ou insuflados. Nesse caso apercebia-se dos objectos no seu tamanho subjectivo.
Era como se andasse sempre com um grande saco de plástico de compras – ele não apreciava a ideia da mochila, associava-a à imagem da vítima a carregar o peso às costas. Não, a sua situação era mais descontraída e natural, e sobretudo mais adequada ao dia a dia – na sua cidade era o saco plástico do supermercado que continha as necessidades dos habitantes. E o saco servia também se ia de viagem. Talvez até se tornasse num viajante muito especial – se o saco de plástico se enchesse com ar e se transformasse num balão para 2.0.0.5. levantar voo.
A sua vida emocional continha todas as variantes: humor, afectos e emoções, sempre diferentes de um caso para outro:
O humor era um estado de ânimo, a disposição, o afecto fundamental e a actividade de base. Era um sentimento difuso, que coloria todos os fenómenos, como um pano de fundo.
Os afectos estabeleciam a complexa relação e ligação aos objectos significativos, a determinadas pessoas, mas também a ambientes, ideias, a si próprio e ao passado. A sua ressonância emocional era a resposta aos acontecimentos que impregnavam e transformavam o seu mundo.
As emoções eram a ondulação da superfície, o que ficava em resposta a um acontecimento ou a uma situação vivida.
Era inevitável que essas ondulações entrassem em jogo com a sua disopsia, pois escapavam-lhe ao seu controlo.
As ideias não lhe fugiam. Associavam-se com abundância e facilidade. Aceleravam-se as representações mentais. A associação de ideias era eficiente e 2.0.0.5. fazia-o analiticamente e, se necessário, como reacção a qualquer estímulo sensorial. Então, o seu estado de consciência e afectividade não era alterado, de modo que a sua visão era geralmente imperiosa. Sim, a cognição era expansiva! Não, bizarra não. Mesmo sendo o seu conhecimento fragmentado.
O reconhecimento de toda esta realidade tinha-o conduzido a uma intensa investigação, levando-o à aquisição de novos dados com vista a uma clarificação dos mecanismos relacionais.
O seu estado vigil oscilava num contínuo, podia ir da situação de totalmente desperto ao sono profundo. Dependia do momento e da situação. A falta de estímulos provocavam-lhe sono e reduziam o seu grau de análise. Por exemplo, quando olhava para um cartaz publicitário, ficava ou desorientado ou, no pior dos casos, apático. Então, faltavam-lhe as palavras.
Mas como mais cedo ou mais tarde podia recorrer ao seu armazenamento cerebral, era-lhe sempre possível escolher outro menu.
Apreciava a normalidade. Considerava-se uma pessoa normal. Normal com uma anormalidade na retina. Um normal com sorte.
E esse seu perfil normal manifestava-se em todas as circunstâncias sócio-culturais e, por isso, ia cultivando as transformações do quotidiano para se manter em forma.
As imagens desempenhavam um papel determinante. Esse papel era no seu caso mais um papel vegetal, translúcido, que embora afirmativo também era relativo. Igual ao momento em que os vizinhos implantaram as tais células no macaco. Gostava da terceira orelha no rato.
Observara que uns tinham mais braços do que outros. Braços robóticos. Usavam-nos com o maior à vontade. Diziam que uma parte dos neurónios tinha entendido o princípio de os comandar.
Trabalhava. Ia buscar informações a muitos ramos do seu conhecimento para atingir os seus fins. Poderia ficar a ponderar bastante tempo. E o tempo tinha várias velocidades. Ocupava-se então da organização, caracterização e denominação dos grupos, do estabelecimento de parentesco entre esses grupos, da identificação de formas já conhecidas e da descrição e denominação de formas novas.
Analisando o comportamento de cada grupo chegava à conclusão de que, uma vez diferenciados, tinham evoluído independentemente, constituindo-se, assim, outros tipos estruturais. A dado momento, resultante da enorme variabilidade que então se manifestava, produzia-se o aparecimento de formas com modalidades adaptativas variadas, em grande concorrência vital.
Esta concorrência vital que se estabelecia entre as espécies, no período de formação e expansão, levava à extinção de muitas delas. E ele tomava notas ou adormecia ao lado do seu microscópio.
Outra vez acordado, organizava os elementos a duas ou três dimensões. As representações a três dimensões permitiam o registo das relações filogenéticas, o grau de parentesco, o decurso do tempo. Ou as coisas provinham directamente da matéria inerte ou originar-se-iam a partir dos humores resultantes de organismos, por processo de reorganização, possível graças aos impulsos vitais que ainda possuíam.
A morfologia fornecia-lhe elementos de aplicação cómoda, sem ser necessário desmontá-los. No entanto, a morfologia por si só, nem sempre era suficiente, pois havia formas com diferentes comportamentos, sem que a morfologia externa fosse diferente. Tinha, então, de recorrer a outros ramos.
Considerando uma série de percepções reunia então o material a estudar, examinava e observava os seus caracteres, isto é, fazia uma análise. Após esta fase, procedia de modo diferente, pois fazia uma síntese das observações e redefinia as formas. Uma vez realizada a tarefa, era-lhe possível concluir se eventualmente essas novas formas apresentavam ou não alguma falha. Umas pareciam mais seguras do que outras, pela sua fixidez ou pela sua variabilidade. Contudo, eram de difícil aplicação, porquanto, se, por um lado se revelavam difíceis de apreciar (frequentemente era necessário recorrer a aparelhagem sofisticada), por outro, para as apreciar, era necessário ter à vista e disponíveis todos os elementos em questão, o que nem sempre era possível. Mal tinha arquivado um elemento já ele evoluía, transformando-se noutro.
Uns diziam que a variação era causada pela acção do meio, outros que a variação era um atributo da condição dos seres e objectos.
Lamentavelmente este problema apresentava-se como um dos mais difíceis e nenhuma das definições o satisfaziam plenamente. Era evidente que uma boa definição deveria conter, explícitos ou implícitos, variados critérios.
Tinha um fraco pela vizinha do terceiro direito. Mas não conseguia encontrar a maneira de se aproximarem. 2.0.0.5. enganava-se às vezes nas distâncias quando lhe queria beijar a mão (talvez devesse pedir mais um braço emprestado - mudar o olhar estava fora de questão). Ela adorava que ele lhe mandasse um adjectivo para o ar, o que lhe permitia cheirar a percepção do seu comunicador.
Umas vezes reagia apaixonada, outras vezes fugia escadas abaixo como um rato. Será que ela não apreciava flores?